01. Introdução:
A poesia de Manuel Bandeira insere-se numa vertente muito sui generis do espírito modernista, uma vez que realiza uma fusão feliz entre a confissão pessoal (individualidade, subjetividade, lirismo) e a vida cotidiana (alteridade, objetividade, impessoalidade). Em suas obras iniciais, “A Cinza das horas” (1917) e “Carnaval” (1919) notamos com facilidade um poeta ainda afeito a certas tendências parnaso-simbolistas e até herdeiro de um certo filão romântico dividir espaço com um poeta capaz de, com ironia e autocrítica, repensar a tradição e inserir as inovações com as quais já estava, naquela altura, “antenado”. Se de um lado, em Bandeira, está marcado (e com que beleza!) o lirismo do EU, de outro, o cotidiano não desaparece de seus textos, numa síntese que estabelece uma relação dialética entre o dia-a-dia mais simples e corriqueiro e os sentimentos pessoais mais sublimes e intensos. Sem negar sua herança lírica, o poeta do Recife saberá negociar a tradição que o constituiu e a inovação que o cercava no início do século XX e, por ser, do chamado grupo paulista (que realizará, em 1922, a Semana de Arte Moderna), o mais maduro e também aquele que primeiro realizou incursões, em poesia, no terreno das novidades sugeridas pelas Vanguardas Européias, Mário de Andrade o nomeou, com justiça, como o São João Batista do modernismo brasileiro. Note como os poemas “Desencanto”, publicado em “A Cinza das Horas” e “Os Sapos”, publicado em “Carnaval” mostram exatamente esse Bandeira inicialmente dividido entre a tradição e a inovação: note, no primeiro poema, o valor que eu lírico confere aos estados emotivos (sem ser piegas, é claro!). Nele, o próprio fazer poético resulta de uma vivência pungente dos mais forte sentimentos; já o segundo texto, imortalizado pela fatídica leitura feita por Ronald de Carvalho durante um dos festivais da Semana de Arte de 1922, Bandeira, encarnando o espírito iconoclasta da arte modernista, atenta contra o até então “sagrado”: o Parnasianismo – e faz isso remetendo o leitor à vida e à obra do poeta Olavo Bilac, em particular, e dos demais parnasianos, em geral.
DESENCANTO
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo algum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre.
OS SAPOS
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
"Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
02. Ser “simples” não é ser “simplório”:
Já parece evidente que a poesia de Manuel Bandeira não é nem mero extravasamento do universo interior do eu lírico, nem tampouco cópia ou fotografia do mundo real. É claro, também, que o leitor atento de Manuel Bandeira perceberá que o poeta, muitas vezes se debruçou, sim, sobre o mundo concreto e as questões sociais, distanciando-se eventualmente da expressão do eu, especialmente em alguns momentos emblemáticos dos livros “Ritmo Dissoluto” (1924) e, mormente, em “Libertinagem” (1930), obra mais afinada com o ideário e a linguagem do nosso primeiro modernismo. É interessante notar que este olhar sobre o mundo concreto aproxima o poeta ainda mais das coisas simples. Mas vale sempre lembrar que, em Bandeira, simplicidade é algo que está longe, muito longe de se parecer com pobreza. Bandeira extrai seus temas e até sua linguagem das coisas mais simples e corriqueiras, dando a essas coisas dimensão poética. Os poemas “O Bicho”, “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “Irene”, entre tantos outros, retratam bem esse Manuel Bandeira “dissoluto” e “libertino” que parece dar uma pausa breve no lirismo para se debruçar sobre o palpável das coisas sem, contudo, perder a grandiosidade poética:
POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
IRENE
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
- Com licença, meu branco.
E São Pedro, bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Se observado todo o transcurso da obra poética bandeiriana, encontraremos um poeta que, seja lançando mão das mais radicais formas expressivas da vanguarda do século XX, seja fazendo uso das formas clássicas, canonizadas pela tradição do lirismo no Ocidente, Manuel Bandeira “delimita um estilo de absoluta simplicidade”, como bem observou o professor Sergius Gonzaga, que prossegue acerca da simplicidade de Bandeira, classificando-a como “espontânea” e lembrando “que pode parecer até pobreza, mas que constitui uma de suas virtudes. Simplicidade alicerçada num processo criativo dominado pelo subconsciente, no qual não há espaço explícito para a luta pela expressão, para a busca da palavra exata, fenômenos que só ocorrem a poetas que escrevem de acordo com princípios do consciente”. Note a singeleza lancinante de “Poema só para Jaime Ovalle”, no qual a solidão se manifesta pujante sem, contudo abreviar a dignidade emocional do eu lírico de Bandeira, que, em vez de sofrer amarguradamente e mergulhar no mundo piegas da “dor-de-cotovelo”, prefere encarar de frente a solidão, contrapondo a ela os mais felizes pensamentos.
POEMA SÓ PARA JAIME OVALLE
Quando hoje eu acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Mas o leitor não se culpe se a simplicidade dos temas e da linguagem de Bandeira, unida à autocrítica (muita vez injusta) do poeta sobre si mesmo, fizer a poética bandeiriana parecer menor do que realmente é. O próprio Manuel Bandeira formulou:
“Tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morai de transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias”.
03. A vida que podia ter sido
É verdade que a poesia bandeiriana assume um forte caráter confidencial, confessional e, em virtude disso, as referências à biografia do poeta tornam-se importantes, uma vez que vida e obra passam, cada vez com maior intensidade, a se amalgamar. A doença (tuberculose), que impedira a realização de muitos de seus sonhos, a derrocada sócio-econômica da família, o homem maduro e sozinho justificam o “clima de desejo insatisfeito e amargurado que percorre a sua obra”.
A doença faz o Brasil perder um arquiteto e ganhar um de seus maiores poetas. E é exatamente a literatura que salva Manuel Bandeira. É por meio da escritura que Bandeira pode criar universos por meio do verso e viajar por ambientes em que tudo o que não é possível no mundo real se concretiza. A Literatura é a “a vida que podia ter sido e que não foi”. Por meio dela, Bandeira pode criar uma terra em que ele tudo pode, pois lá ele é amigo do rei. Em Pasárgada, os desejos insatisfeitos na vida real se concretizam. É verdade que alguns deles são aparentemente muito simples, mas já vimos que a simplicidade é essência da grandeza de Manuel Bandeira. A antiga cidade persa se transfigura no ambiente utópico, onde um tuberculoso pode tomar banho de mar e deitar na beira do rio; onde a irmã Rosa se transfigura no ser mítico da mãe d’água; onde não reina outro bom-senso a não ser o de Joana de Espanha, a louca; onde o menino franzino e raquítico pode subir em pau-de-sebo e andar de bicicleta; onde as drogas e o erotismo são livres: enfim, onde não há limites sequer entre o mundo do homem e o da criança.
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei da bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau de sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
O erotismo, que se faz presente desde o quando o poeta estava caindo em dissolução e ainda não havia se tornado um libertino. Apesar de amado muito as mulheres, isso não significa ter amado muitas mulheres. Na linha do erotismo-fantasia, do erotismo-apenas-desejo, temos o irônico e intenso Balada das três mulheres do sabonete Araxá:
BALADA DAS TRÊS MULHERES DO SABONETE ARAXÁ
As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às quatro horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! (...)
Que eu vivo e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira moresse...Oh, então nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!
Se me perguntassem:
Queres ser estrela? queres ser rei? queres uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca.
Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá.
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Talvez o acumulado dessa vida que podia ter sido e que só foi graças à Literatura (a tuberculose, a derrocada social da oligarquia a que pertencia sua família) justifique certo tom bemol, amargurado que toma de assalto a poética de Bandeira. Parece ser difícil ao poeta esquecer que a vida é uma "agitação feroz e sem finalidade". De que servem os belos desejos? De que servem as belas mulheres? De que serve o belo de tudo se não há outra coisa a desejar a não ser a vida, simplesmente?:
BELO BELO
Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cuzco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisaBelo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.
04. A indesejada das gentes
Seja reflexo de uma crise pessoal, seja pela tensão de conviver com esta idéia desde muito jovem, Bandeira desenvolve continuamente o tema da “indesejada das gentes”: a morte. Não raro o poeta reflete sobre sua própria morte, como em “Consoada”, sobre a morte dos seus entes queridos, como em “Profundamente” e até sobre a morte enquanto fenômeno que transcende o entendimento, como em “Momento no Café”:
CONSOADA
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
PROFUNDAMENTE
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondo de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo Profundamente
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo Profundamente.
MOMENTO NO CAFÉ
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
05. O tempo de eu menino
É difícil dizer se a dignidade emocional de Manuel Bandeira a que já nos referimos é o que faz sua poesia ser lírica sem deixar de ser moderna ou se é a modernidade em Bandeira que não permite que seu lirismo venha sob outra forma que não seja a da dignidade. Assim sendo, a tristeza, visitante às vezes costumeira do autor de Estrela da Tarde (1963), não toma, contudo, como bem observou Sergius Gonzaga, “uma direção crepuscular, lamentosa, nostálgica ou doentia”. Ou, como Gilberto Freyre dizia, há em Manuel Bandeira uma conciliação sábia entre, um menino, instintivo e apaixonado pela vida e um velho, lúcido e pessimista. Sergius Gonzaga arremata: “é este menino - habitante do poeta - que esquadrinha os horizontes do cotidiano, que descobre o lirismo perdido nos becos, nos arrabaldes, em pobres quartos de hotel e que, finalmente, concede extraordinária força vital ao texto poético”:
VERSOS DE NATAL
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado! Obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera de Natal
pensa ainda em pôr os seus chinelos atrás da porta.
Evocando a infância, como já fizera em “Libertinagem”, no célebre poema “Evocação do Recife”, no qual vemos ser fundada toda a mitologia pessoal de Bandeira, também em “Porquinho-da-Índia” vemos o menino vencer, belamente, o homem, fazendo-o sorrir:
PORQUINHO-DA-ÍNDIA
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-Índia
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar de baixo do fogão
Levava ele pra sala
Pra lugares mais bonitos, mas limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-Índia foi minha primeira namorada.
06. Amigos
Em uma de suas últimas obras, Bandeira realiza um cantar de amigos, revelando, ora com humor, ora com paixão, a admiração que tinha por aqueles que foram, de fato, a grande companhia de sua existência. Passaram Teodoras, Irenes, Teresas; passaram Totônio Rodrigues, Tomásia, Rosa, Aninha Viegas… ficaram os amigos, cantados em “Mafuá do Malungo” (1954). Admirações que sempre foram recíprocas e constantes são retomadas como as que nutria e recebia dos amigos Carlos Drummond, Guimarães Rosa, A. Frederico Schimidt e tantos outros:
A JOÃO GUIMARÃES ROSA
Não permita Deus que eu morra
Sem que ainda vote em você;
Sem que, Rosa amigo, toda
Quinta-feira que Deus dê
Tome chá na Academia
Ao lado de vosmecê,
Rosa dos seus e dos outros,
Rosa da gente e do mundo,
Rosa de intensa poesia
De fino olor sem segundo;
Rosa do Rio e da Rua,
Rosa do sertão profundo
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent'anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é Carlos Drummond de Andrade.
Prima em Alguma Poesia,
Prima no Brejo das Almas
Prima em Rosa do Povo,
No Sentimento do Mundo.
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é Carlos Drummond de Andrade).
Como é o fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Inteiramente à vontade
O poeta diverso e múltiplo
Que é Carlos Drummond de Andrade.
Louvo o Padre, o Filho, o Espírito
Santo, e após outra Trindade
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Que é Carlos Drummond de Andrade.
07. Bandeira par lui-même
Deixo, por fim, amados amigos, queridos alunos e distintos leitores, o próprio Manuel Bandeira falar de si, em três momentos: um, em “Auto-retrato”; outro, em “Testamento” e o último em "Último Poema". Espero que todos possam lançar mais profundos olhares sobre a poesia de uma vida inteira que podia ter sido e que foi. Foi… não a vida de um poeta menor, mas de um poeta menormenorenorme… enorme!
AUTO-RETRATO
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
TESTAMENTO
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
ÚLTIMO POEMA
Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Caríssimos amigos, alunos e leitores, diante da voz de Manuel Bandeira, meu silêncio!
Abraço n’alma!
Marcos de Andrade Filho
Recife, 29 de novembro de 2007.